Autismo e Vacinas: A Verdade por Trás da Polêmica
- Olavo Porepp
- 19 de mai.
- 6 min de leitura
O início de uma crise
Em 1998, um artigo publicado na respeitada revista científica The Lancet deu início a uma das maiores controvérsias médicas das últimas décadas. Nele, o então médico e professor da University College London, Andrew Wakefield, e outros 12 autores sugeriam a existência de uma nova síndrome, a “enterocolite autista”, que supostamente fazia uma ligação entre a vacina tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) com distúrbios intestinais e autismo. O estudo, feito com apenas 12 crianças, relatava que pais de oito delas associaram mudanças comportamentais com a vacinação.
Embora o artigo não comprovasse uma relação causal, Wakefield promoveu a ideia de forma contundente em entrevistas e coletivas de imprensa, recomendando que a vacina tríplice viral deixasse de ser aplicada em conjunto, o que gerou medo e desconfiança na população. Sua tese era que a combinação de três vírus vivos poderia causar efeitos adversos, incluindo o autismo.

Contexto e origens da hipótese
A ligação entre Wakefield e o tema vinha de antes. Nos anos 1990, ele já havia publicado estudos sugerindo que o vírus do sarampo poderia causar a Doença de Crohn, uma doença inflamatória intestinal. Em 1995, tentou associar essa vacina à mesma doença intestinal. Segundo o jornalista Brian Deer, que liderou uma série de investigações e reportagens sobre o caso, o ponto de virada foi quando Wakefield foi procurado por Rosemary Kessick, mãe de uma criança autista, que liderava um grupo chamado Autismo Induzido por Alergia.
A partir daí, Wakefield passou a divulgar sua teoria, mesmo após sua demissão da University College London em 2001, alimentando um até então tímido movimento antivacina mundial. Curiosamente, o motivo do desligamento da universidade foi a recusa de Wakefield em conduzir um novo estudo para validar de forma mais ampla e controlada os resultados de seus estudos prévios.

Com o tempo, vieram à tona revelações que abalaram ainda mais a credibilidade de Wakefield. Antes mesmo de publicar seu artigo, ele havia feito um pedido de patente para uma vacina alternativa ao sarampo, levantando suspeitas sobre suas motivações. Além disso, seu próprio aluno de doutorado, Nick Chadwick, realizou testes moleculares para detectar a presença do vírus do sarampo nas amostras intestinais e no líquor de crianças com autismo. Contrariando a teoria de Wakefield sobre a relação entre o vírus e o transtorno, os resultados não demonstraram a presença do vírus nas amostras. Porém, esses resultados foram omitidos, contribuindo para o pânico global causado pela publicação de Wakefield.
A credibilidade de Andrew Wakefield sofreu novos abalos em 2006, quando Brian Deer revelou que o médico havia recebido 435 mil libras em pagamentos não declarados da Comissão de Serviços Jurídicos britânica (Legal Services Commission), órgão público responsável por financiar assistência jurídica gratuita a pessoas de baixa renda na Inglaterra e no País de Gales. Esses recursos haviam sido destinados a apoiar processos contra fabricantes da vacina tríplice viral. Os pagamentos a Wakefield começaram dois anos antes da publicação de seu artigo no The Lancet, revelando um grave conflito de interesse. A denúncia expôs a motivação financeira por trás das alegações científicas e contribuiu para o descrédito definitivo de Wakefield.
Condenações éticas e científicas
Entre 2007 e 2010, o Conselho Médico Geral do Reino Unido conduziu uma longa audiência para avaliar acusações de má conduta profissional. Wakefield foi acusado de realizar procedimentos invasivos em crianças sem justificativa clínica ou aprovação ética, omitir dados importantes sobre a seleção de pacientes e falsificar informações. Ele também foi acusado de comprar amostras de sangue de crianças em uma festa de aniversário por cinco libras cada, atitude que foi amplamente criticada.
Com base nas denúncias, o periódico The Lancet retirou oficialmente o artigo em 2010. Wakefield perdeu sua licença médica no Reino Unido e se mudou para os Estados Unidos, onde segue influente em círculos antivacina.

Consequências globais
A teoria desacreditada de Wakefield teve consequências sérias: queda nas taxas de vacinação, aumento de surtos de sarampo, caxumba, além de causar mortes evitáveis. Na Inglaterra, a taxa de vacinação caiu de 92% em 1996 para 80% em 2004, ficando bem abaixo do recomendado de cobertura de 95%.
Em 2008, nos Estados Unidos, houve um ressurgimento significativo de sarampo. Dados do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) reportaram 131 casos apenas de janeiro a julho de 2008, já acima da média anual dos anos anteriores. Para comparação, entre 2000–2007 registravam-se em média ~62 casos/ano. Segundo o próprio CDC, esse foi o maior surto desde a declaração de eliminação da doença em 2000. Do total de 131 casos, 91% estavam em pessoas não vacinadas ou de status de vacinação desconhecido.
Mesmo após a ampla refutação científica, a desinformação persistiu e segue até hoje, embora em proporção menos preocupante. A grande jogada de Wakefield foi levar o debate para a imprensa e para população geral, que por falta de conhecimento e letramento científico, eram vulneráveis a sua teoria. Em verdade, exceto por seus poucos aliados, Wakefield nunca teve qualquer respaldo da comunidade científica. Além disso, teve a "ajuda" da renomada revista médica The Lancet que permitiu a publicação de um estudo extremamente frágil e ainda demorou mais de 10 anos para retratá-lo. Considerando o alto nível de criticidade da revista, podemos assumir que foi uma atitude no mínimo estranha. Por outro lado, até certo ponto, o hospital escola da universidade de Wakefield, o Royal Free Hospital, também teve um papel fundamental ao promover a principal coletiva de imprensa que serviu de catapulta para a disseminação das mentiras sobre a vacina tríplice viral.
Passado o período mais crítico de pânico sobre as vacinas, Wakefield foi homenageado algumas vezes, mas não da forma que gostaria. Em 2011, foi eleito o pior médico do ano pelo site Medscape. Em 2012, a revista Time o listou entre as “Grandes Fraudes Científicas” e recebeu o prêmio irônico de “Conjunto da Obra em Charlatanismo” da organização britânica Good Thinking Society.

Por que o estudo nunca teve validade científica
Mesmo se não houvesse conflito de interesse ou manipulação de dados, o estudo original de Wakefield não teria força científica para estabelecer uma relação entre vacinas e autismo. Tratava-se de uma simples série de casos, sem grupo controle, com amostragem mínima e sujeito ao viés de memória nos relatos dos pais. Estudos desse tipo servem apenas para descrever casos clínicos e gerar hipóteses para futuros estudos. Além disso, após o pânico gerado por Wakefield, estudos mais robustos e independentes, como um que incluiu mais de 30 mil crianças no Japão, onde a vacina tríplice viral foi suspensa em 1993, mostraram que a incidência de autismo continuou a subir mesmo com a suspensão da vacina, reforçando que não há relação causal entre a vacinação e o desenvolvimento do autismo.
Outro estudo, publicado em 2002, no renomado periódico científico New England Journal of Medicine, também trouxe dados robustos contrariando a hipótese de Wakefield. A pesquisa contou com mais de 500 mil crianças dinamarquesas, das quais 82% haviam sido vacinadas com a tríplice viral, e não encontrou qualquer relação da vacina com o autismo.
O legado da desinformação
O caso Wakefield mostra o poder destrutivo da pseudociência quando ganha visibilidade. Pais em busca de respostas para o autismo de seus filhos, frequentemente imersos em angústia e culpa, tornam-se alvos fáceis para teorias sem base científica. Até hoje, uma parte significativa da população continua acreditando na falsa ligação entre vacinas e autismo. Pesquisas recentes indicam que cerca de um terço dos americanos ainda considera essa hipótese possível.
No Brasil, a desinformação também teve efeitos concretos, evidenciados por notícias como esta publicada em 2022 no site do Instituto Butantan.

Nos últimos anos, a cobertura vacinal vem caindo de forma preocupante no Brasil. A vacinação contra a poliomielite, por exemplo, atingiu apenas 77% em 2022, abaixo dos 95% recomendados, o que reacendeu o risco de reintrodução da doença, erradicada no país desde 1994. O sarampo, eliminado em 2016, retornou com surtos em 2018, impulsionados pela queda da cobertura vacinal para apenas 64% em 2022. A febre amarela, também sob controle por décadas, voltou a causar surtos entre 2017 e 2019 em vários estados. Esses dados mostram que os efeitos do medo injustificado das vacinas ultrapassam o campo das ideias e resultam diretamente no adoecimento e na morte de pessoas por doenças antes controladas ou eliminadas.
REFERÊNCIAS
Johns Hopkins University – The Evidence on Vaccines and Autism - https://publichealth.jhu.edu/2025/the-evidence-on-vaccines-and-autism
Journal of Child Psychology and Psychiatry – No effect of MMR withdrawal on the incidence of autism: a total population study - https://doi.org/10.1111/j.1469-7610.2005.01425.x
Wikipedia – Andrew Wakefield - https://en.wikipedia.org/wiki/Andrew_Wakefield
British Medical Journal (BMJ) – Japanese study is more evidence that MMR does not cause autism - https://www.bmj.com/content/330/7491/558.1
New England Journal of Medicine – A population-based study of measles, mumps, and rubella vaccination and autism - https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa021134
Ministério da Saúde – Ministério da Saúde lança Campanha Nacional de Vacinação contra Poliomielite - https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2024/maio/ministerio-da-saude-lanca-campanha-nacional-de-vacinacao-contra-poliomielite
PBS NOVA – Autism-Vaccine Myth - https://www.pbs.org/wgbh/nova/article/autism-vaccine-myth/
Oxford University Press – Vaccinating Britain: Mass vaccination and the public since the Second World War
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